“Quando avistámos as instalações do campo de concentração tornou-se visível, muito perto dele, o perfil inconfundível do cemitério local, Não atribuí a essa circunstância qualquer significado especial. Não me passou pela ideia (, a que alguns testemunhos aludiram,) de que a escolha do local para as instalações do presídio tivesse sido influenciada por essa proximidade.”
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“O Luanda, depois de onze dias dias de uma viagem tormentosa, em condições que muitos animais não aguentariam – viajámos, como referi oportunamente, no porão do navio, na chamada «classe de boi» -, fundeou na pequena baía da vila do Tarrafal no princípio da tarde do dia 29 de Outubro de 1936.”
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“A maioria dos guardas era constituída por agentes da PSP ligados à PVDE e à recém-criada Legião Portuguesa. (…) Com poucas excepções, eram indivíduos semi-analfabetos, boçais, com evidentes complexos de inferioridade cultural em relação aos prisioneiros. Queriam mostrar que estávamos na sua dependência e que eram eles quem mandavam. Confirmavam plenamente o acerto do rifão popular: «Se queres conhecer o vilão, mete-lhe na mão!».”
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“Em 1938, quando a direcção do campo foi assumida pelo capitão João da Silva – o Faraó, como passaria a ser designado – este não esconderia que tinha sido um dos «técnicos» encarregados de estudar, com os nazis, o regime especial a impor aos que ali estavam internados. (Essa viagem de estudo servira para «aperfeiçoar» o funcionamento do sistema antes de assumir a sua direcção.) (…) Apesar da enorme diferença entre o hitlerismo e o salazarismo, houve, no caso particular do Tarrafal, uma evidente similitude entre os dois regimes.”
“Na verdade, o Campo de Concentração do Tarrafal, eufemística e hipocritamente apelidado pelos salazaristas de «Colónia Penal», foi um típico campo de concentração decalcado, em todas as suas peças, do modelo nazi.”
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“À mais pequena infracção (…) – como acontecia, por algumas vezes, por simples distracção – implicava a submissão a brutais espancamentos, seguido de isolamento na frigideira, nunca inferior a dez dias, associado ao regime de pão e água.”
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“O médico que entrou ao serviço cerca de um mês depois de ali chegarmos, o insensível e criminoso Esmeraldo Pais Pratas – a quem atribuímos a alcunha de Tralheira – afirmava que não dispunha de medicamentos. Estava à espera que lhos enviassem de Lisboa. Essa foi a sua desculpa durante vários meses. Mas passou a controlar os que nos eram enviados pelas famílias. Utilizava-os na clínica privada que exercia na vila do Tarrafal.” Depressa percebemos que a sua função, no quadro do sistema prisional, não era tratar da nossa saúde, mas pelo contrário no sistema repressivo e ajudar à eliminação física dos prisioneiros. (…) O Tralheira viria a ter, ao longo do tempo, responsabilidade directa na morte de vários prisioneiros.”
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“O Tralheira esclarecer-nos-ia, com brutal franqueza, na fase final desse período, a propósito das nossas reclamações, nomeadamente quanto ao facto de os nossos camaradas terem morrido sem assistência médica:
- Não estou aqui para curar, mas para assinar certidões de óbito”